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Facilitar a autenticidade na adolescência é uma das formas mais efetivas de enfrentamento à ansiedade.
Bianca (13 anos, nome fictício) é uma das muitas adolescentes que já atendi no Núcleo de Apoio Psicopedagógico da Secretaria de Educação de Itanhaém. Encaminhada pela escola após a constatação de queda no desempenho escolar, isolamento social, crises de choro e ansiedade e ideação suicida, Bianca estava bastante apreensiva por passar por um atendimento psicológico pela primeira vez em sua vida, de acordo com sua mãe, que entrevistei momentos antes de convidar a jovem para minha sala.
Com isso em mente, além de contextualizar a atuação do serviço, as questões que motivaram seu encaminhamento pela escola e questões de sigilo do atendimento psicológico, busquei tranquilizá-la sobre os objetivos de nossa interação. Não iria avaliá-la, diagnosticá-la ou tratá-la. Meu papel ali era o de lhe oferecer escuta e acolhimento, entender seus desafios, fornecer eventuais orientações e, caso necessário, realizar encaminhamentos a serviços de saúde.
Listo algumas das informações que eu tinha sobre ela em relação a questões familiares e de convivência com colegas de escola, e peço que me conte sobre suas experiências e dificuldades da forma que preferir.
A adolescente gradual e rapidamente se sente confortável para falar, e o faz com lucidez e perspicácia raríssimas, mesmo dentre adultos. Narra sua chegada à escola alguns anos atrás em uma turma na qual a maioria das pessoas já se conhecia. A fim de se adequar, ser aceita e benquista, mudou o estilo de se vestir, começou a usar maquiagem, chegou a alisar o cabelo. Por dentro, diz Bianca, ainda sou uma criança de 9 ou 10 anos que gosta de brincar, gosta de princesas, vestidos e roupas coloridas.
Com uma visão analítica e crítica sobre o mundo e sobre as pessoas, reconhece que há a necessidade de encarnar uma persona para interagir e conviver de forma mais aceitável. Mas que há um preço a se pagar por isso.
O Dr. Gabor Maté, em uma de suas tantas profundas e sensíveis palestras, explora a concorrência entre duas necessidades humanas: a autenticidade e o pertencimento. A autenticidade corresponde à possibilidade de experimentar e expressar nossos sentimentos, preferências e opiniões de maneira espontânea e genuína. Já o pertencimento é a necessidade de vinculação e aceitação em grupos sociais. Maté discute como frequentemente, para pertencermos e sermos aceitos e apreciados na família ou em grupos de amigos, precisamos abrir mão de nossa autenticidade, adotando comportamentos, opiniões ou modos de comunicação valorizados pelo grupo.
A tendência, observa Maté, é que o pertencimento vença essa disputa, por ser uma necessidade mais básica que a autenticidade, o que se confirma ao analisarmos a Hierarquia das Necessidades (ou Pirâmide das Necessidades) desenhada pelo psicólogo humanista Abraham Maslow em 1943, em artigo intitulado "A teoria da motivação humana".
Outro psicólogo humanista, Carl Rogers, defendia que as diversas expressões do sofrimento humano eram derivações de uma mesma busca: a pela resposta à pergunta "quem sou eu, realmente?". A supressão da autenticidade e a ruptura da comunicação interna das pessoas estaria, assim, como pano de fundo de problemas de desajustamento emocional e comportamental. Neste contexto, a autenticidade não é apenas uma necessidade, mas condição ao desenvolvimento pleno, à saúde e à felicidade.
A importância da autenticidade, nas obras de Rogers, não se restringe ao cliente (ou paciente), mas também ao próprio terapeuta que o atende. Junto com a consideração positiva incondicional e a empatia, a autenticidade compõe a tríade das atitudes facilitadoras da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP), a abordagem psicoterapêutica desenvolvida por Rogers à luz de seus estudos.
No primeiro semestre de 2024, facilitei junto com meu amigo e colega de profissão Pedro Luz o Percurso Formativo Tornar-se Pessoa, no qual exploramos a principal obra de Carl Rogers junto a um grupo de psicólogas, psicólogos, estudantes de Psicologia e outras pessoas interessadas ao longo de oito encontros extremamente ricos e transformadores.
Previamente ao início do Percurso Formativo, realizamos uma aula aberta intitulada "A clínica como espaço de ser: a perspectiva rogeriana da relação terapêutica". Você pode assistir à aula no YouTube. Curiosamente, a ideia de clínica como espaço de ser (pessoa) tem tudo a ver com a temática deste texto.
Ao discorrer sobre o sofrimento imposto a si pelas adequações ao grupo que se via obrigada a fazer, Bianca diz "na escola e em casa, não consigo ser eu... Aqui estou conseguindo ser eu mesma", aludindo à fluidez com que compartilhava comigo suas visões e vivências.
Facilitar a autenticidade na adolescência é uma das formas mais efetivas de enfrentamento à ansiedade. Isto porque a ansiedade desadaptativa, cada vez mais prevalente na população mundial, sobretudo a brasileira, mostra-se abundante dentre adolescentes. E, sob uma ótica rogeriana, a ansiedade está relacionada ao estado de incongruência, no qual há um descompasso entre a experiência do sujeito e aquilo que ele comunica ao mundo, através de palavras e comportamentos.
A adolescência se mostra como um contexto fértil à ansiedade principalmente por se tratar de uma etapa na qual a pressão social de pares e da família passa a incidir sobre as pessoas com maior intensidade, exigindo ajustamento comportamental e atualizações do autoconceito progressivamente mais complexas e contraditórias.
Como facilitar a autenticidade? As atitudes facilitadoras de Carl Rogers, mencionadas anteriormente, são posturas que psicólogos e psicólogas devem ser capazes de adotar e expressar caso desejem o desenvolvimento autêntico e saudável das pessoas que atendem. Tais atitudes são constituídas por:
Autenticidade: o próprio terapeuta deve ser uma pessoa espontânea, não deve se revestir de um personagem ao lidar com outra pessoa;
Empatia: o interesse genuíno pelos sentimentos e pelas visões da realidade da outra pessoa. Passa por abrir mão de seus julgamentos e perspectivas para conseguir enxergar as coisas do ponto de vista do outro;
Consideração positiva incondicional: traduz-se como uma postura calorosa e não-julgadora, na qual a aceitação do cliente pelo terapeuta não é condicionada ou diminuída por seus sentimentos e comportamentos "negativos";
Rogers sugere que, ao interagir de maneira sistematizada e recorrente com um/a terapeuta autêntico/a, empático/a e que a aceita como é, a pessoa passa a adotar progressivamente tais condutas para consigo própria. Ou seja, se conhece melhor e se aceita mais, é mais capaz de identificar e experimentar seus sentimentos e se permite ser mais autêntica. Mais ela mesma.
Adicionalmente, é importante destacar que tais atitudes facilitadoras não se restringem à prática da psicoterapia. Para Rogers, elas se aplicam à qualquer relação na qual se busque ajudar outra pessoa, seja no contexto familiar, escolar ou empresarial.
Em um mundo de aparências, superficialidade e performance, é compreensível o aumento significativo de problemas relacionados à ansiedade dentre adolescentes, quando compreendemos o efeito que estes componentes exercem sobre as possibilidades de autenticidade.
Este é um desafio de saúde pública que envolve a cultura de forma ampla, em nossos valores e modos de nos relacionar. E enquanto não é possível tornar o mundo um lugar onde o pertencimento favoreça a autenticidade das pessoas, vamos buscando abrir mão das máscaras, de entrevista em entrevista, de sessão em sessão, de adolescente em adolescente.
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Lucas Delfin é especialista em Psicologia Humanista com Abordagem Centrada na Pessoa, em Psicologia Social e em Semiótica e Análise do Discurso.