
A automutilação é um fenômeno complexo em que uma pessoa provoca lesões em si mesma de forma proposital. As taxas internacionais de prevalência para pelo menos um evento autolesivo ao longo da vida é de cerca de 18% em amostras comunitárias. Trata-se, portanto, de um problema de saúde pública e uma realidade cada vez mais preocupante. Também podendo ser chamada de lesão autoprovocada, autolesão ou lesão autoinfligida, o fenômeno da automutilação é mais prevalente na adolescência do que em outras fases da vida.
Segundo a Fundação Demócrito Rocha (2020), os métodos de automutilação mais frequentes são cortes (94,7%), queimaduras (78,9%), autogolpes (73,7%), coçar até ferir (58,9%), mordidas (50,5%), arrancar cascas de feridas (48,4%) e bater a cabeça contra paredes ou superfícies rígidas (46,3%). Neste artigo, iremos abordar os pontos principais sobre este tema para que possamos compreendê-lo melhor e oferecer ajuda quando necessário. Vale mencionar que este artigo foi elaborado com base em materiais disponibilizados pelo Ministério da Saúde.
Se você ou alguém que você conhece está se autolesionando, não deixe de procurar ajuda profissional. Neste post, você encontrará indicações de serviços que podem prestar atenção em saúde mental. Ao final, você também encontrará links para alguns materiais voltados a adolescentes, educadores e profissionais da saúde. Vamos lá?
Compreendendo a automutilação
Para começarmos o assunto, é necessário entendermos que a automutilação não é um transtorno por si só, mas um sintoma. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) enquadra a automutilação como sintoma de diversos transtornos conhecidos, como de Transtornos do Neurodesenvolvimento, Transtornos Dissociativos de Identidade e o Transtorno de Personalidade Borderline. A automutilação também pode ser apresentada por pessoas com Transtornos de Humor, como a depressão, e Transtornos de Ansiedade.
O segundo ponto que precisamos mencionar é que a automutilação não é um fenômeno necessariamente novo ou exclusivo das gerações atuais. O primeiro artigo a tratar sobre autolesão na literatura médica foi publicado em 1846. Já o primeiro livro a abordar este tema
foi o Man Against Himself, escrito por Menninger em 1938. Desde essa época, já há uma perspectiva da prática de autolesão como uma forma de alívio da dor emocional.
Historicamente, sua ocorrência costumava ser silenciada tanto pelas pessoas que praticavam autolesões, quanto por suas famílias, autoridades sanitárias, órgãos governamentais e pela mídia de forma geral. Isto porque a forma mais recorrente de automutilação são cortes na região dos pulsos (às vezes nas coxas, também), e este tipo de situação sempre esteve relacionada ao suicídio, um tema que há muito tempo é tratado como tabu. Pesquisas mais recentes, no entanto, revelam que o fenômeno da automutilação não necessariamente está relacionado à ideação suicida. Isto é uma descoberta bastante pertinente, pois permite que estudemos o fenômeno de forma mais aberta, possibilitando a oferta de atenção especializada a adolescentes que praticam autolesões.
Assim, o primeiro passo para compreendermos o fenômeno e oferecermos assistência adequada à pessoa que se autolesiona é diferenciar quando este comportamento está relacionado à ideação suicida e quando não está. Isto porque hoje temos o entendimento mais consolidado de que a automutilação é frequentemente utilizada como forma de aliviar o sofrimento psíquico, ansiedade e angústia. Ao materializar o ferimento e trazer a dor para a dimensão física, de alguma forma se está localizando e dando concretude a dores psicológicas. Essa diferenciação (se há ou não relação com ideação suicida) é bastante simples de ser realizada: basta perguntar à pessoa. É claro que isso precisa ser feito de forma delicada e respeitosa. Neste artigo, também traremos algumas perguntas que podem ser feitas, além de recomendações sobre como abordar o tema com adolescentes, seja você um profissional da saúde, educador ou familiar.
É muito comum que pais, mães e educadores apresentem visões distorcidas, opiniões e julgamentos sobre o fenômeno da automutilação. Frequentemente se ouve que se trata de uma "modinha", ou que isso seria influência da internet. Em famílias com valores mais rígidos, ocorre rejeição ou desapontamento em relação a quem pratica a autolesão. É importante considerarmos que, sim, influências externas, sejam elas advindas de amigos, conhecidos ou de conteúdos difundidos pela internet, podem apresentar o adolescente ao ato da automutilação. No entanto, ainda assim ele estará sendo utilizado como forma de aliviar algum sofrimento emocional ou psicológico. Precisamos ter humildade e compreender que o fato de não gostarmos que os adolescentes se autolesionem, ou não entendermos os motivos que os levam a isso, não irá fazer com que este comportamento cesse, e muito menos irá resolver os conflitos e sofrimentos emocionais que levaram o adolescente a se machucar.
Fatores de risco e de proteção
Apresentaremos agora alguns fatores de risco e de proteção que podem estar relacionados à ocorrência (ou à não ocorrência) de comportamentos autolesivos em adolescentes.
Fatores de risco: maus-tratos na infância e adolescência, como abuso sexual, emocional e/ou físico, negligência; bullying e cyberbullying; crise de orientação sexual; abuso de álcool e drogas; uso excessivo e indevido de tecnologias da informação; isolamento social; transtornos alimentares, de humor, de personalidade e transtornos de ansiedade.
Fatores de prevenção: bom vínculo mãe-bebê nos primeiros anos de vida; relacionamento saudável com família e amigos; prática regular de esportes; boa qualidade de sono; contato com a natureza; orientações acerca de autonomia e limites; habilidade de pedir ajuda quando necessário; desenvolvimento das habilidades socioemocionais.
É importante observarmos que existe a tendência de ocultar o comportamento por vergonha ou por desaprovação social (uso de vestimentas para cobrir partes lesionadas do corpo – mangas compridas no calor etc; resistência a atividades físicas que coloquem a mostra partes do corpo lesionadas). Também é comum que a automutilação venha acompanhada de frequente isolamento social; quadros reiterados de impulsividade, irritabilidade e agressividade; baixa autoestima, com autocrítica exacerbada; autocobrança excessiva; falta de motivação; presença de algum transtorno alimentar; alterações de sono; falta ou diminuição da higiene pessoal.
Algumas situações externas que podem estar associadas a casos de automutilação são bullying ou cyberbullying; falta de afeto e atenção familiar; falta de reconhecimento e valorização por familiares, colegas e professores. Ambientes inseguros e inconsistentes tendem a levam os jovens a desenvolver relacionamentos interpessoais pobres e a não conseguir lidar com as próprias emoções.
Abordando e intervindo
As perguntas abaixo podem auxiliar a entender se o comportamento autolesivo de alguém está relacionado ou não à ideação suicida, e são uma forma respeitosa e diretiva de abordar o assunto, principalmente com adolescentes.
Alguma vez você se machucou de propósito?
Se sim, havia intenção de tirar a própria vida?
Esse episódio de automutilação foi planejado?
Se sim, quanto tempo você gastou com planejamento?
Alguma vez você sentiu alívio por se ferir?
Se sim, por que necessitava de alívio? Há algum problema ou questão que te incomoda, angustia ou aflige atualmente?
Se sim, você já dividiu essa situação e/ou esses sentimentos com alguém?
ATENÇÃO: A forma como abordamos o assunto com os adolescentes é extremamente importante, e pode definir se nossa intervenção irá promover acolhimento e cuidado, ou se irá agravar o estado emocional do outro!
É necessário compreender que a automutilação tem relação direta com a dificuldade de lidar com conflitos emocionais, sendo necessário, portanto, oferecer acolhimento, compreensão e apoio, evitando julgamentos, críticas e rejeição. Evite reagir com surpresa, pânico, exagero ou repulsa. A pessoa que se machuca tem consciência do que faz e sente extrema vergonha, constrangimento e medo de que outras pessoas venham a descobrir sua situação, tanto é que tendem a esconder os vestígios. Não se deve demonstrar interesse excessivo pelo comportamento autolesivo nem curiosidade para ver as feridas. Levar a pessoa a reviver com detalhes os episódios de autolesões pode acarretar o efeito reverso e desencadear outros episódios.
Além de dificuldades internas na lida com os sentimentos, também pode estar presente a sensação de incompreensão, sendo um dos motivos para seu sofrimento não ser externalizado. Por isso, não se deve deixar de dar atenção a alguém que se encontre em um quadro de automutilação, ainda que se trate de lesão leve e superficial.
Cada caso deve ser tratado de forma singular, mas em linhas gerais é importante auxiliar o adolescente a perceber outras formas e meios para resolver conflitos emocionais. Também é importante o desenvolvimento da capacidade de dar nome e direcionamento às emoções.
Para além do desenvolvimento de habilidades socioemocionais e a observância de fatores ambientais e relacionais (ambiente escolar, relacionamentos interpessoais, relação com a família), algumas dicas podem ser úteis aos adolescentes para evitar a prática da automutilação. Fundamentalmente, estas sugestões envolvem a estimulação tátil e sensorial das áreas do corpo onde as lesões costumam ser provocadas. Considerando que os cortes são a forma mais comum de autolesão, os adolescentes podem ser orientados a, quando sentirem o ímpeto de se autolesionarem, aplicarem gelo às regiões onde costumam se cortar, esfregar borracha na região ou rabiscar a região com uma caneta. Essas práticas não implicam em riscos à integridade física e podem operar como substitutos às lesões, já que existe uma associação cognitiva entre a estimulação da pele dessas partes do corpo e o alívio do sofrimento psíquico. Essas sugestões são paliativas e não substituem a atenção especializada de serviços de saúde mental, psicólogos ou psiquiatras.
Onde encontrar ajuda?
É fundamental que adolescentes, pais, responsáveis e educadores saibam onde procurar ajuda para situações de automutilação, com ou sem ideação suicida. Abaixo você encontra algumas informações úteis a este respeito.
Mapa da Saúde Mental: este site reúne informações sobre atendimento em saúde mental, tanto de locais presenciais, quanto de iniciativas que viabilizam atendimento virtual.
Pode Falar: canal de ajuda em saúde mental, criado pela Unicef, para pessoas de 13 a 24 anos. Além de atendimento por WhatsApp e Telegram, também conta com as seções Quero Me Cuidar e Quero Me Inspirar, com conteúdos confiáveis sobre autoajuda e ajuda a terceiros.
Centro de Valorização da Vida (CVV): renomada organização fundada em 1962 que oferece apoio emocional 24 horas por dia sob total sigilo por telefone (188), e-mail ou chat.
Unidades Básicas de Saúde (UBS), Unidades de Saúde da Família (USF) e Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis (CAPSi) são serviços públicos que podem prestar orientações e atendimento a casos de automutilação.
A psicoterapia é um tratamento que pode auxiliar bastante em situações como essa. Caso você queira saber mais sobre este assunto, visite nossa página de psicoterapia. Visite também nossa página sobre psicoterapia online para adolescentes.
O que diz a legislação brasileira sobre o assunto?
A automutilação ganhou reconhecimento enquanto problema de saúde pública no Brasil apenas recentemente. A Lei 13.819 de 2019 institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, tendo alguns de seus pontos sido regulamentados pelo Decreto 10.225 de 2020.
Esta lei prevê que o Governo Federal crie um serviço de atenção em saúde mental remoto, gratuito e sigiloso (como o que é oferecido pelo CVV e pelo Pode Falar), o que ainda não ocorreu. A lei também estabelece que casos suspeitos ou confirmados de violência autoprovocada (suicídio consumado, tentativa de suicídio e automutilação) são de notificação compulsória. Isto quer dizer que estabelecimentos de saúde públicos e privados são obrigados a notificar essas ocorrências à autoridade sanitária competente, e que estabelecimentos de ensino públicos e privados são obrigados a notificar tais ocorrências ao Conselho Tutelar. O estabelecimento destes fluxos e protocolos acontece mais lentamente do que gostaríamos, e, ao que parece, dependerá de legislações específicas nos estados e municípios até que possa se efetivar de forma mais plena.
Materiais sobre o assunto
Informação de qualidade é sempre determinante para o desenrolar e o desfecho de situações em que existe sofrimento psíquico ou transtornos mentais. Procure sempre profissionais, organizações e serviços de confiança para obter orientações sobre assuntos como este. Abaixo você encontrará links para alguns materiais pertinentes sobre automutilação. Todos eles compõem o curso livre oferecido periodicamente pelo Ministério da Saúde na plataforma Universus.
Guia de saúde mental para adolescentes - 11 a 14 anos - O que fazer?; Como ajudar?; O papel da prevenção; Fatores de proteção.
Cartilha para prevenção da automutilação e do suicídio - 15 a 18 anos
Conclusão
Esperamos que este artigo tenha colaborado na sua compreensão do fenômeno da automutilação. Em resumo, podemos destacar que a automutilação é uma maneira de atenuar o sofrimento psíquico advindo de conflitos emocionais, e que ela é um sintoma de um quadro clínico que requer atenção. Ao lidarmos com adolescentes que apresentam este sintoma, é importante que busquemos suspender nossos juízos de valores para realizar uma conversa acolhedora e respeitosa. Também vimos algumas sugestões de como abordar e intervir sobre situações em que há autolesão por parte de adolescentes, e discutimos a importância de buscar ajuda especializada ao nos depararmos com casos assim. Apresentamos alguns serviços que podem ser úteis para adultos e adolescentes que apresentem episódios de automutilação com ou sem ideação suicida, e trouxemos a caracterização do fenômeno como problema de saúde pública a partir da legislação brasileira.
A automutilação é um problema sério, e geralmente é um indício da existência de outras questões de saúde mental que estão sendo vivenciadas pelo adolescente. Não feche os olhos para isso!
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Nós da Kairós Psicologia estamos à disposição para o atendimento de adolescentes, familiares, educadores e profissionais da saúde que necessitem de apoio para lidar com situações desta natureza. Entre em contato conosco por WhatsApp ou nos escreva em contato@kairospsicologia.com.br.
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Lucas Delfin tem formação em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Adolescentes e Jovens, é Especialista em Psicologia Social e em Semiótica e Análise do Discurso.