
Lives NPC
Se você não se liga muito na cultura das redes sociais, ou restringe seu tempo online a um nicho mais delimitado, é possível que as tais 'lives NPC' possam ter passado batidas e você não faça nem ideia do que estamos falando. Mas este fenômeno pode ser uma boa oportunidade para discutir a objetificação do outro enquanto um problema cultural e psicológico.
Esta "modalidade" de live não é exatamente tão nova, mas se tornou uma tendência de relevância nas últimas semanas. Progressivamente populares no TikTok, nestas lives os streamers agem como personagens superficiais, com movimentos repetitivos e reações "programadas" de acordo com os presentes virtuais recebidos pelos seguidores — presentes estes, que representam ao tiktoker uma coisa nada virtual: grana. Segundo informações da coluna Splash, do UOL, a tiktoker canadense PinkyDoll já teria ganhado mil dólares em uma única transmissão. No Brasil, o youtuber Felca afirma ter arrecadado cerca de cinco mil reais em uma de suas lives deste tipo.
Como o brasileiro não perde uma oportunidade de fazer piada, sátiras deste tipo de live têm surgido aos montes no TikTok e Instagram. Uma das melhores conta com uma mulher sem qualquer maquiagem ou caracterização segurando uma CLT e dizendo repetidamente e de forma propositalmente abobada "assina minha carteira".
Se você não sabe e nem faz questão de saber sobre quem são essas pessoas ou qual a lógica por trás deste tipo de conteúdo, não se preocupe. O intuito deste texto é utilizar este fenômeno como ponto de partida para pensarmos como objetificamos os outros em algumas situações da vida.
Gênero e erotização
Antes de prosseguirmos para explorar o significado de NPC e como uma ideia de protagonismo egocentrado pode nos levar a objetificar os outros, é necessário fazer um destaque. Estas lives foram alavancadas sobretudo por jovens mulheres streamers que podemos chamar de e-girls, ou "garota virtual". Nestas transmissões, não é raro que haja alguma conotação sexual implícita, além do uso de vozes e trejeitos infantilizados e/ou teatrais, em alusão a animes e mangás, produtos culturais japoneses onde o implícito, a erotização das relações e a infantilização das mulheres vez ou outra se encontra.

Transmissões em que estas garotas e mulheres interpretam papéis desta natureza e como este tipo de conteúdo possui apelo erótico mais ou menos implícito são temas que merecem discussões à parte e mais aprofundadas. Nosso intuito aqui é utilizar as lives NPC para discutir a objetificação do outro de forma mais ampla, mas considerei que seria necessário sublinhar este atravessamento específico para que não ignoremos tais nuances.
Protagonismo e coadjuvação nos games
O termo NPC é a sigla para "non-playable character", ou "personagem não-jogável". Este é um conceito bastante conhecido para quem tem familiaridade com o universo dos videogames. A maioria dos games conta com um ou mais personagens principais, que são controlados pelos jogadores, e outros personagens que não podem ser controlados, sejam aliados, inimigos ou transeuntes.

No entanto, jogos de mundo aberto geralmente contam com grandes quantidades de "figurantes" que servem sobretudo para popular o mundo, na intenção de o conferir maior realismo. Estes figurantes geralmente apresentam padrões de movimento limitados, pouca ou nenhuma espontaneidade e costumam contar com duas ou três falas mais ou menos genéricas. Cyberpunk 2077 e jogos das séries GTA, The Witcher e Assassin's Creed são alguns exemplos do que estamos falando, embora haja diferenças significativas na qualidade dos NPCs entre estes jogos. O que nos interessa aqui é que é justamente a automaticidade e a repetição de movimentos e falas que emprestou o termo "NPC" para descrever as transmissões ao vivo com as quais iniciamos este texto.
Algumas produtoras têm investido em tecnologia e buscado aperfeiçoar o comportamento dos personagens não-jogáveis a fim de permitir maiores possibilidades de interação do jogador com os habitantes do universo e conferir ainda mais realismo aos jogos. Um bom exemplo disso é o jogo de faroeste Red Dead Redemption 2, no qual, ao menos supostamente, todos os personagens não-jogáveis possuem uma espécie de rotina e coisas específicas que fazem ao longo do dia, não sendo apenas bonecos parados no mesmo lugar fazendo e dizendo as mesmas coisas.
De toda forma, isso instituiu no universo dos games a perspectiva de que somente o protagonista tem personalidade, história e motivações, enquanto os demais personagens a seu redor são "achatados", superficiais e cumprem um papel na narrativa que é secundário e de apoio em relação à jornada do herói.
NPCs costumam desempenhar algum papel de suporte ao herói, mentoreando-o, fornecendo-lhe uma informação ou pista, entregando-lhe equipamentos ou itens importantes, negociando produtos ou coisas do gênero. Isso os confere uma posição de autômatos sem vida e sem valor, na maioria dos casos, estando onde estão meramente para cumprir um papel.
No cinema, encontramos um filme que retrata com maestria a ideia de NPCs: O Show de Truman (1998).

O personagem interpretado por Jim Carrey leva uma vida suburbana e pacata, até começar a desconfiar que há algo de errado nas pessoas da cidade e na própria realidade que vivencia. Truman passa a testar as reações das pessoas quando ele próprio sai do roteiro programado, por exemplo dizendo algo incomum ao vendedor de jornais para descobrir que ele não tem traquejo para responder a qualquer coisa que fuja ao esperado.
Por fim, ele descobre que toda sua vida foi uma mentira, e que vivia desde bebê em um reality show com cenários, personagens e eventos roteirizados para o entretenimento do público, que acompanhava ávido sua vida diária.
Quando as máquinas tomam consciência
Buscando tocar este tema, a série Westworld, da HBO, tem como prerrogativa a existência de um parque de diversões para adultos que simula uma cidade do Velho Oeste povoada por robôs idênticos a seres humanos exercendo seus papéis dentro daquele microcosmo fictício.

O atrativo do tal parque é que os visitantes podem fazer absolutamente qualquer coisa com estes autômatos, podendo torturá-los, matá-los ou estuprá-los, por exemplo. Quando o parque fecha, estes robôs são restaurados e resetados. No entanto, após uma atualização de software que objetivava proporcionar mais "humanidade" aos androides, eles começam a preservar memórias de suas interações com os visitantes e gradualmente desenvolvem consciência de suas próprias existências.
Estigma e esquemas tipificadores
Estigma e esquemas tipificadores são dois conceitos importantes que podem influenciar a forma como vemos e interagimos com outras pessoas, muitas vezes levando a uma perspectiva objetificante. Vamos entender o que cada um deles significa e como se relacionam.
O estigma, como concebido por Erving Goffman na década de 1960, refere-se a um atributo ou característica que torna uma pessoa ou grupo socialmente desviante ou indesejável de acordo com as normas predominantes da sociedade. O estigma é uma marca no corpo, física e tangível, então pode ser estudado levando em consideração deficiências visíveis, diferenças étnicas, de gênero, entre outras. O estigma pode resultar em discriminação e pode prejudicar a autoestima e a identidade da pessoa estigmatizada.
Por outro lado, os esquemas tipificadores são padrões cognitivos que usamos para categorizar informações complexas ou experiências sociais. Esses esquemas simplificam a compreensão do mundo ao nosso redor, mas também podem levar a generalizações simplistas.
Há que se considerar que os esquemas tipificadores possuem certa função evolutiva, mas no nosso dia-a-dia podem nos distanciar do contato com o outro e produzir discriminação ou injustiças. Usemos como exemplo a ideia que cada um de nós tem a respeito de pessoas em situação de rua. Podemos pensar que são perigosos, vagabundos, usuários de drogas, ou qualquer outra coisa do tipo. Concebemos uma ideia sobre aquele determinado grupo populacional, e se uma pessoa se aproxima de nós na rua e há características físicas -- feição, cor da pele, roupas, jeito de andar ou falar -- que nos levem a enquadrar aquele ser humano como pertencente ao grupo "morador de rua", imediatamente acionamos alguns protocolos de como será esta interação, o que devemos dizer ou não dizer etc.
Isso nos leva a uma armadilha perigosa: a de acharmos que já conhecemos o outro sem conhecer, ou que já sabemos como será esta interação antes mesmo dela se iniciar. É nesta sensação de "já sei" -- quem é você, o que você quer, como você pensa -- que o outro nos escapa. Talvez o exemplo da pessoa em situação de rua possa soar fácil, mas isso funciona a todo momento, em muitas situações. Podemos dizer "os adolescentes de hoje são assim", como se todo adolescer fosse igual, "as mulheres precisam disso", como se todas as pessoas do gênero feminino compartilhassem das mesmas necessidades, e por aí vai.
Mas a pergunta aqui é: será que queremos -- ou mesmo que conseguimos -- apreender o outro como um ser humano?
Eu-Isso x Eu-Tu
Martin Buber (1878-1965), filósofo e escritor austríaco-judeu é conhecido por sua filosofia da relação interpessoal, expressa em sua obra "Eu e Tu" (1923), que oferece contribuições caras à Psicologia Humanista. Buber argumentava que as interações humanas podem ser compreendidas em dois modos fundamentais: o "Eu-Isso" e o "Eu-Tu".
No modo "Eu-Isso", as pessoas tendem a enxergar outras pessoas e objetos como coisas a serem utilizadas ou manipuladas para alcançar seus próprios objetivos. Nesse modo, as relações são instrumentais e impessoais, e a pessoa não busca uma conexão genuína com o outro. É um modo de interação utilitarista e objetificante, onde o outro é reduzido a um objeto de conveniência ou a um meio para um fim.
Por outro lado, o modo "Eu-Tu" representa a qualidade mais profunda das relações humanas. Nesse modo, as pessoas se envolvem de maneira autêntica e genuína com o outro, reconhecendo a singularidade e a humanidade do outro indivíduo. Buber argumenta que somente no encontro "Eu-Tu" é possível experimentar uma autêntica conexão e comunhão, transcendendo as categorias e rótulos que frequentemente limitam as interações humanas. É uma abordagem que valoriza a empatia, a reciprocidade e a autenticidade nas relações interpessoais.
Em resumo, Martin Buber nos convida a refletir sobre como nos relacionamos com os outros e a reconhecer a importância de buscar conexões genuínas e significativas nas interações humanas. Seu conceito de "Eu e Tu" continua a influenciar a filosofia, a psicologia e a compreensão das relações humanas, destacando a importância de tratarmos os outros como seres humanos completos e não como meros objetos ou meios para nossos fins.
Respeitar o outro
Embora possa soar como óbvio que todas as pessoas são tão humanas como nós mesmos, perceber e lidar com as implicações disso nem sempre é fácil. É evidente que não precisamos ter um contato profundo com todas as pessoas o tempo todo, mas reconhecer que o outro tem suas dificuldades, potencialidades e necessidades é uma atitude fundamental nas relações humanas, seja no trabalho, na vida conjugal ou na parentalidade.
Trazendo esta discussão para o âmbito familiar, faz parte do desenvolvimento das crianças e adolescentes perceber, em algum momento da vida, que seus pais não são meros adultos que se responsabilizam mais ou menos por seu cuidado e educação, mas que são pessoas com história, desejos e medos. Que também são vulneráveis às vezes.
Muitos pais e mães objetificam seus filhos o tempo todo. Ignoram o fato de que as crianças e adolescentes (ou mesmo adultos!) podem ter opiniões, desejos e afinidades próprias e diferentes das dos seus genitores.
É necessário o desenvolvimento da empatia, da sensibilidade e da inteligência emocional para alcançarmos um modo de relação com o outro que o considere em sua humanidade.
Concluamos estas reflexões falando sobre respeito. Esta palavra costuma ter duas conotações principais: obediência e tolerância. Respeito é sinônimo de obediência quando utilizado a partir de uma posição autoritária. "Respeite seu pai!", se mal utilizado, significa "silencie suas queixas ou divergências e obedeça à minha autoridade". Ou, quando falamos em "respeitar as diferenças", sejam elas étnicas, de gênero, de religião ou orientação sexual, esta fala costuma querer dizer "você deve tolerar a existência destas pessoas".
Ao olharmos para a etimologia da palavra "respeito", encontramos um significado muito mais interessante e potente do que aquele presente na sua utilização usual. O substantivo é expressado no latim como respectus, proveniente do verbo respectāre, que possui o sentido de considerar ou prestar atenção ao redor. É composto pelo prefixo re-, em função de reiteração, e spectāre, associado a specere, indicando a ação de apreciar, olhar ou observar.
Visto deste modo, "respeitar" alguém pode ser entendido como "olhar de novo". Olhar para além das aparências. Olhar fora dos esquemas tipificadores. Olhar de novo para aquilo que supomos já conhecer. Respeitar é considerar a complexidade do outro.
Buscar aplicar estas reflexões às nossas vidas tende a deslocar o eixo da nossa percepção de um modelo egocentrado a outro que permite abarcar nuances mais sutis das relações interpessoais, enriquecendo nossas interações e nossa concepção do mundo e do outro.
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Lucas Delfin é especialista em Semiótica e Análise do Discurso e em Psicologia Social e pós-graduando em Psicologia Humanista com Abordagem Centrada na Pessoa.