Este texto visa apresentar a discutir alguns aspectos da esquizoanálise, um campo de estudos, pesquisas e problemas que produz influências sobre a maneira como podemos pensar as instituições, as sociedades, as culturas, os grupos e os sujeitos. Daí a sua aplicabilidade clínica, preponderantemente uma clínica psicológica, mas que pode agregar contribuições e produzir interferências na clínica médica, da fisioterapia, da nutrição, da terapia ocupacional, dentre outras. Isto posto, muitos autores ou leitores da esquizoanálise não a verão como uma abordagem clínica, embora isto possa ser discutível.
Nesta apresentação, irei abrir mão do preciosismo conceitual, algo que sem dúvida têm sua relevância, mas que poderia ofuscar a liberdade com a qual buscarei abordar alguns aspectos da esquizoanálise. O título "O que é a Esquizoanálise?" pode sugerir que farei alguma definição objetiva ou descritiva do assunto, expectativa que desde já adianto que dificilmente satisfarei, sendo que não responder a esta pergunta de alguma forma também colabora com a resposta que ofereço.
O Prof. Alexandre Henz do curso de Psicologia da UNIFESP costumava achar alguma graça quando alguém (eu, inclusive) dizia não conseguir entender O Anti-Édipo, principal obra de Deleuze e Guattari — filósofo e psiquiatra, respectivamente —, pensadores que desenham a esquizoanálise no final da década de 1960, na França. Alexandre costuma dizer que a esquizoanálise e suas obras não seriam passíveis de serem entendidas, pelo menos não a partir de uma aproximação racional.
Os portugueses usam o verbo "perceber" tanto para o sentido de "entender" como de "sentir". Se a compreensão racional é apenas um dos níveis de leitura, quando o que é lido é a esquizoanálise, isso se faz ainda mais verdadeiro. Talvez buscar percepções (ou experimentações) seja mais profícuo do que tentar chegar a entendimentos.
Desta forma, o que proponho aqui é realizar algumas aproximações ou sobrevoos em aspectos-chave da esquizoanálise, de forma que possamos ter uma ideia um pouco mais próxima e concreta daquilo no que ela consiste. De antemão talvez seja válido ressaltar que a esquizoanálise não é uma abordagem psicológica, muito embora ela surja em alguma medida de agenciamentos entre a psicanálise e o marxismo.
Identidade e devir
A esquizoanálise propõe uma abordagem radicalmente diferente das correntes principais da Psicologia para entender a subjetividade e a formação do eu. Em vez de considerar a identidade como algo predeterminado, enfatiza a multiplicidade, a heterogeneidade e a fluidez dos elementos que compõem a subjetividade.
Para a esquizoanálise, a identidade é um processo complexo que envolve uma interação constante entre diferentes forças e intensidades. Ela não é uma entidade fixa e acabada, mas um campo em constante transformação. Essa perspectiva desafia as noções tradicionais de identidade baseadas em categorias rígidas, como gênero, sexualidade, raça ou nacionalidade, e busca explorar as multiplicidades e os fluxos que atravessam tais categorias.
O devir, por sua vez, é um conceito central na esquizoanálise. Ele se refere ao processo de se tornar, de estar em constante movimento e transformação. O devir implica a rejeição de qualquer ideia de essência fixa ou identidade final. Em vez disso, enfatiza a potência de se tornar algo diferente, de experimentar novas formas de ser e de se relacionar com o mundo.
Nessa perspectiva, a identidade não é vista como verdadeira ou autêntica, mas como uma multiplicidade de linhas de fuga e conexões. Ela é construída através de encontros, afetos e experiências que nos atravessam e nos transformam. A esquizoanálise nos convida a experimentar diferentes modos de ser e a abraçar a complexidade e a instabilidade inerentes à experiência de viver. Ao abraçar essa perspectiva, podemos explorar novas possibilidades de existência e resistir às formas de poder que buscam restringir e controlar nossos corpos, forças e desejos.
Dito isso, podemos dizer que as leituras e as experimentações da esquizoanálise são consideravelmente singulares e acabam por mobilizar ideias e afetos de acordo com quem lê. Existem identidades hegemônicas, ou dominantes, que seriam aquelas que no tecido social e político acabam por se cristalizar enquanto lugares de poder. Se houvesse um ser que materializasse a hegemonia identitária, este ser seria um homem adulto, branco, cisgênero, heterossexual de classe média. O estabelecimento de uma identidade hegemônica faz com que tudo aquilo que seja divergente a ela caia para as margens da sociedade. Desta forma, podemos pensar em mulheres; crianças, adolescentes e idosos; pessoas lésbicas, gays, bisexuais, transgêneros e outras cuja orientação sexual ou identidade de gênero não sejam o "padrão"; pessoas negras, pardas e indígenas etc. como grupos mais ou menos marginalizados sobre os quais operam relações de dominação que são políticas, sociais e psicológicas.
Este aspecto contra-hegemônico da esquizoanálise tem implicações consideráveis nas leituras que se faz dela. Enquanto homem, branco, cisgênero, heterossexual e de classe média, tenho um repertório de experiências de vida que permitem uma determinada leitura da esquizoanálise. Qualquer pessoa que esteja fora de alguns destes "pedestais" hegemônicos fará leituras distintas da minha, provavelmente muito mais interessantes e intensas.
De toda forma, as identidades, sejam hegemônicas ou marginais, constituem uma espécie de prisão da experiência. Em contraponto, a ideia de devir tem uma dimensão prática que se relaciona diretamente com a experiência de vida de cada sujeito, muito embora não possamos falar em indivíduos aqui, vez que a constituição de si se daria através de um processo de singularização. O devir se refere à ideia de que estamos constantemente nos tornando algo diferente, experimentando transformações e movimentos em nossa subjetividade. O devir não é um estado final a ser alcançado, mas um processo de contínua transformação e renovação.
Na prática, o devir implica em abandonar a busca por uma identidade fixa e estável e abraçar a incerteza e a instabilidade. Significa permitir-se fluir entre diferentes formas de ser, explorar novos territórios existenciais e experimentar múltiplas possibilidades de vida. É deixar de lado as amarras das expectativas sociais e culturais que nos impõem um caminho pré-determinado e buscar uma abertura para o desconhecido.
Para vivenciar o devir, é necessário estar aberto a experiências que nos desafiam, que nos levam além de nossa zona de conforto e nos colocam em contato com o novo. É preciso questionar e desestabilizar as identificações fixas que nos limitam, permitindo que as multiplicidades que compõem nossa subjetividade se manifestem. Essas multiplicidades podem estar presentes em diferentes aspectos de nossa vida, como sexualidade, gênero, relações interpessoais, carreira, hobbies, entre outros.
Ao adotar uma postura de devir, também é fundamental reconhecer que a mudança é uma constante e que o processo de transformação não segue uma trajetória linear ou previsível. Podemos experimentar avanços e retrocessos, momentos de desorientação e reconstrução. O devir é um convite para estar aberto aos encontros e afetos que nos atravessam, permitindo que eles nos transformem e nos ajudem a expandir nossos horizontes existenciais.
Na prática da vida cotidiana, o devir implica em tomar decisões que nos levem em direção às possibilidades de crescimento e expansão pessoal, em vez de se apegar a identidades rígidas e padrões pré-estabelecidos. Significa explorar diferentes caminhos, experimentar novos projetos e relações, e estar disposto a se reinventar e se redescobrir ao longo do tempo.
Um exemplo bastante próximo para todos nós são os papéis de gênero, que são as expectativas e normas sociais associadas ao gênero, ou seja, as características, comportamentos e papéis que são considerados apropriados para homens e mulheres em determinada sociedade. Os papéis de gênero podem variar culturalmente e estão sujeitos a mudanças históricas e sociais. De certa forma, a cultura nos oferece gêneros dentro dos quais existem algumas estruturas de personalidade e de papel social, e direcionamos nosso desenvolvimento pessoal, sexual e afetivo a ocupar estes moldes.
Uma perspectiva crítica dos papéis de gênero e/ou sociais pode permitir às pessoas vivenciarem suas vidas, seus corpos e suas relações de maneira mais livre e espontânea. Neste sentido, faz sentido dentro do escopo da esquizoanálise recusar os papéis de gênero que determinam como homens e mulheres devem trabalhar, amar, se cuidar, ou se comportar. Isso permite que homens experimentem outras masculinidades possíveis para além daquela que é projetada em si por sua família ou cultura. Da mesma forma, as mulheres que se desgarram dos papéis atribuídos a si (com muito mais violência do que as atribuições e juízos que recaem sobre os homens) também estão recusando os papéis de gênero para serem mulher à sua maneira.
Quando falamos em papéis de gênero, muitas vezes falhamos em explicitar e brincar com o significado de papéis neste termo. Estamos falando da vida social como se fosse uma peça de teatro, em que homens recebem alguns "papéis", ou personagens, e as mulheres recebem outros. Recusar os papéis de gênero é dizer ao diretor do espetáculo que não estamos dispostos a encenar este ou aquele papel, e, em vez disso, escreveremos um outro roteiro para nós. Note que aqui uso "diretor" com a certeza de este ser um ente masculino, mesmo a nível de metáfora, já que o lugar de diretor representa a ordem e a hegemonia, ideias "masculinas", embora femininas na gramática.
Note também que a explanação que acabo de fazer leva em conta o binômio (ou a oposição) homem-mulher, e que esta dicotomia também vivencia uma crise sem antecedentes com novas expressões dos corpos, das sexualidades e das identidades de gênero. Não entrarei neste assunto para não me alongar demais, embora ele seja extremamente pertinente ao pensarmos em esquizoanálise. Quem sabe em uma próxima discussão?
Em resumo, o devir na ótica da esquizoanálise nos convida a abraçar a transformação e a fluidez como partes integrantes de nossa existência. É uma perspectiva que valoriza a multiplicidade, a diversidade e a abertura para o desconhecido. Ao incorporar o devir em nossa experiência prática de vida, podemos abrir espaço para um maior crescimento pessoal, autoconhecimento e liberdade em relação às limitações impostas pelas identidades fixas e estáticas.
A falta
A falta é um conceito central tanto na psicanálise quanto na esquizoanálise, porém, essas abordagens teóricas apresentam diferenças conceituais significativas em relação à compreensão desse fenômeno.
Na psicanálise, a falta está relacionada à ideia de um vazio ou ausência originado pela castração simbólica, que ocorre quando a criança percebe que não pode satisfazer todos os seus desejos e que existem limites impostos pela sociedade e pela cultura. Essa falta é considerada estrutural e constitutiva do sujeito, sendo uma fonte de angústia e desejo constante de preenchimento. A psicanálise enfatiza a busca do sujeito pelo objeto perdido, uma tentativa de recuperar a completude imaginária.
Por outro lado, a esquizoanálise aborda a falta de uma maneira diferente. Ela questiona a ideia de uma falta estrutural e, ao invés disso, enfatiza a multiplicidade e a produtividade do desejo. Para a esquizoanálise, a falta não é vista como uma falta ontológica, mas como um campo de possibilidades que impulsiona o devir. A ênfase é colocada nos desejos e afetos que atravessam o sujeito, criando linhas de fuga e abrindo espaço para novas formas de existência. A falta, nessa perspectiva, não é algo a ser preenchido, mas algo que gera movimento e transformação.
Enquanto a psicanálise busca compreender e interpretar o inconsciente e as formações simbólicas que surgem a partir da falta, a esquizoanálise se concentra na análise dos agenciamentos e das multiplicidades que compõem a subjetividade. Para a esquizoanálise, o objetivo não é chegar a uma resolução ou preenchimento da falta, mas explorar as possibilidades criativas e transformadoras que ela traz consigo.
O desejo
Havendo diferenças significativas na compreensão da esquizoanálise a respeito da ideia de falta, em comparação com as psicanálises, evidentemente também há perspectivas diferentes quando falamos sobre desejo.
Na psicanálise, o desejo é entendido como uma força motivadora que impulsiona o sujeito em direção à satisfação de seus impulsos e necessidades. É considerado um processo intrincado, no qual o desejo é moldado por meio do inconsciente, dos conflitos, das fantasias e dos impulsos reprimidos. A psicanálise enfatiza a importância do desejo como motor da subjetividade e busca desvendar as camadas ocultas do desejo inconsciente para compreender melhor as motivações e os comportamentos humanos. Nas psicanálises, o desejo é sempre inconsciente, e apresenta mecanismos como sublimação e deslocamentos a fim de poder se manifestar na consciência e poder se efetivar. No entanto, esta efetivação sempre será parcial e insuficiente. De maneira um tanto caricata, poderíamos pensar em uma pessoa que tem a ambição de se tornar delegado ou delegada de polícia, e esta ambição poderia remeter ao desejo de exercer poder sobre o outro, de reparar injustiças, ou de estar em uma posição de controle e relativa segurança. Assim, o desejo na psicanálise estabelece uma espécie de analogia, colocando as instâncias inconsciente e consciente em um paralelo, com o desejo elegendo representantes mais ou menos alegorizados para ocuparem a vida consciente das pessoas.
Já a esquizoanálise apresenta uma perspectiva diferente sobre o desejo. Nessa abordagem, o desejo não é visto como uma falta a ser preenchida, mas como uma força criativa e produtiva que impulsiona o devir. A esquizoanálise entende o desejo como algo multifacetado, que não está ligado apenas à satisfação de necessidades, mas também à criação de novas possibilidades e conexões. O desejo é concebido como uma multiplicidade de fluxos intensivos que atravessam o sujeito e o conectam ao mundo.
Capturas do desejo
A captura do desejo refere-se ao processo no qual as forças e intensidades do desejo são limitadas, restringidas ou desviadas, resultando em formas de subjetividade e relações sociais que reproduzem estruturas de poder e controle. A captura do desejo ocorre quando o desejo é aprisionado em normas, valores e ideologias dominantes que moldam e limitam a expressão criativa do sujeito.
A esquizoanálise busca analisar e desafiar essas formas de captura do desejo, a fim de abrir espaço para a liberação e a multiplicidade de suas expressões. Ela questiona as estruturas sociais e culturais que operam para restringir e direcionar o desejo, buscando criar linhas de fuga e possibilidades de escape.
Uma das formas de captura do desejo na perspectiva esquizoanalítica ocorre através da criação de identidades fixas e estereotipadas. A imposição de papéis e expectativas sociais limita a liberdade de expressão do desejo, fazendo com que o sujeito se identifique com categorias predefinidas e se enquadre em padrões estabelecidos. Essa captura do desejo pode levar à alienação e ao afastamento das próprias intensidades criativas e autênticas do sujeito.
Além disso, a captura do desejo também pode ocorrer através da lógica capitalista e consumista, na qual o desejo é constantemente direcionado para a busca de objetos de consumo e a satisfação de necessidades superficiais. Essa captura do desejo transforma-o em uma força instrumentalizada, vinculada à lógica do mercado e ao ideal de sucesso material. O desejo é aprisionado em uma lógica de produção e consumo, tornando-se um meio para atingir metas externas e ilusórias.
Vejamos duas tirinhas do cartunista André Dahmer, de uma curta série intitulada "O Homem Que Acreditava em Propagandas":
A propaganda e a publicidade têm a captura do desejo como uma condição para sua existência. Nas tirinhas, o personagem adquire produtos, um pote de margarina e um carro, mencionando os motes publicitários veiculados para vender tais produtos. A "Família Doriana" se consolidou praticamente como um conceito ou uma expressão, tendo em vista a maneira como a marca de margarinas utilizou por um bom tempo a união familiar ao redor da mesa de café da manhã, em uma convivência harmônica e amorosa, para vender seus produtos. Já nos comerciais de veículos, a liberdade, a segurança e a aventura são alguns temas recorrentes. Os quadrinhos brincam com a maneira como a publicidade funciona: os comerciais de margarina não vendem margarina, mas sim uma ideia de família. Da mesma forma, as montadoras não tentam vender carros, mas estilos de vida etc.
A propaganda de certo é a instância da vida social onde a captura do desejo ocorre de forma mais evidente, mas não é a única. Ela está presente também em religiões, partidos políticos e ideologias. Quando tecemos críticas ao capitalismo enquanto sistema, seja pela exploração do trabalho, seja pelas desigualdades econômicas e sociais que produz, muitas vezes perdemos de vista a maior força deste sistema. E esta força não está na coerção econômica, na repressão policial e jurídica, mas sim na capacidade que o capitalismo e o neoliberalismo têm de colonizar as subjetividades, moldando os objetos e as expressões do nosso desejo. O que quero dizer com isso é que, ao nascer e crescer inserido em um contexto de relações de trabalho e de consumo específico, o sujeito aprende a desejar conforme o funcionamento e a oferta deste sistema.
Vamos tornar as coisas um pouco mais concretas. O "sonho americano" é um conceito que se refere à crença na possibilidade de sucesso, prosperidade e mobilidade social nos Estados Unidos, independentemente da origem social ou étnica. É uma narrativa cultural que promove a ideia de que, com trabalho duro, dedicação e oportunidades igualitárias, qualquer pessoa pode alcançar uma vida próspera e alcançar o tão desejado sucesso.
O termo "white picket fence" é um símbolo comumente associado ao sonho americano. A cerca branca de madeira é frequentemente retratada como um elemento icônico das casas suburbanas americanas, evocando uma imagem de segurança, estabilidade e conforto. Essa imagem idílica do "white picket fence" representa uma vida tranquila e bem-sucedida, com uma família feliz, uma casa própria e um padrão de vida confortável.
Essa imagem simbólica da cerca branca representa a aspiração de muitos americanos em alcançar a estabilidade e a segurança material que são consideradas componentes essenciais do sonho americano. Ela representa a busca por um estilo de vida suburbano idealizado, com uma casa própria, um jardim bem cuidado e uma comunidade tranquila. A cerca branca simboliza a separação e a demarcação do espaço privado, oferecendo uma sensação de proteção e privacidade. Vemos que o "sonho americano" é uma ideologia bastante próxima da meritocracia e do ideário capitalista, e é uma boa ilustração prática da captura do desejo para além da propaganda publicitária.
A esquizoanálise propõe a desconstrução dessas formas de captura do desejo, buscando criar espaços de liberação e multiplicidade. Ela nos convida a experimentar novas formas de desejo, desafiando as normas e os limites impostos pela sociedade e pelo sistema capitalista. A liberação do desejo implica em permitir que as intensidades e as forças do desejo se manifestem de maneira autêntica e criativa, rompendo com as amarras que o aprisionam.
Moral e ética
Moral e ética são dois termos importantíssimos para a Psicologia, para a Filosofia e para a Esquizoanálise. Antes de discutirmos o que estes conceitos têm a ver com a esquizoanálise, pensemos em um exemplo corriqueiro para nos certificar de que, ao falarmos sobre moral e ética, estamos todos na mesma página. Para isso, utilizaremos o futebol.
A moral seria como as regras do jogo estabelecidas pela federação ou liga esportiva. Essas regras determinam o que é permitido e o que não é durante a partida, como não usar as mãos para tocar a bola e não cometer faltas graves. A moral seria como o conjunto de regras visíveis e compartilhadas por todos os jogadores, treinadores e árbitros.
Já a ética seria como o senso de justiça e fair play que cada jogador traz para o campo. Enquanto a moral estabelece as regras básicas, a ética envolve a maneira como os jogadores escolhem jogar dentro dessas regras. Poderíamos dizer que um jogador ético é aquele que joga de forma justa, respeita os adversários, não tenta enganar o árbitro e se esforça para ser um bom companheiro de equipe. A ética é como o conjunto de valores internos que influenciam as ações e as atitudes dos jogadores, mesmo quando não estão sendo observados por outras pessoas.
Gilles Deleuze e Félix Guattari propõem uma crítica aos sistemas morais tradicionais, argumentando que eles são baseados em estruturas de poder e controle que restringem a liberdade e a multiplicidade dos sujeitos. A ética na esquizoanálise é concebida como um processo de experimentação, criação e singularização. Ela não se baseia em princípios universais ou categorias morais pré-determinadas, mas sim na responsabilidade do sujeito em relação a si mesmo e aos outros. Envolve a exploração das intensidades do desejo, a abertura para a multiplicidade de experiências e a busca pela liberação das formas aprisionadoras de subjetividade.
A ética esquizoanalítica está relacionada ao processo de se tornar um "artista da existência", como Deleuze e Guattari afirmam. Trata-se de experimentar diferentes formas de vida, desafiar as normas impostas e criar novas linhas de fuga. A ética esquizoanalítica não busca estabelecer regras fixas, mas sim encorajar a experimentação, a autenticidade e a liberdade de expressão.
Uma abordagem ética da vida tende a fazer com que os grupos e os sujeitos desenvolvam um grande senso de responsabilidade, uma vez que não se submetem a uma tabela de condutas e valores que deve ser seguida, mas criam a sua ética a partir das experimentações e reflexões. Embora "ethos" (palavra grega de onde se origina a ética) seja frequentemente traduzido como "caráter" ou "modo de ser", sua raiz etimológica pode ser relacionada à noção de um caminho ou uma trilha percorrida.
Assim, as estradas e trilhas da vida são o espaço-tempo que percorremos e nos quais podemos desenvolver nossa ética própria.
Empoderamento e potencialização
A palavra "empoderamento" tem estado em alta nas últimas décadas, refletindo uma crescente conscientização sobre a necessidade de promover a igualdade de gênero, o reconhecimento dos direitos das minorias e o fortalecimento de grupos historicamente marginalizados. Através de movimentos sociais, campanhas de conscientização e debates públicos, o termo tem sido amplamente utilizado para descrever o processo de capacitação e emancipação, tanto a nível individual quanto coletivo. O empoderamento tem sido usado para se referir ao combate a normas sociais opressivas, estimular a participação cidadã, promover a diversidade e impulsionar a mudança social. Essa popularidade reflete a busca por uma sociedade mais justa e inclusiva, onde todas as pessoas tenham a oportunidade de exercer seu poder e influência de forma equitativa. Na esquizoanálise, a diferença entre empoderamento e potencialização reside nas concepções subjacentes a esses termos. Embora ambos estejam relacionados à ideia de capacitação e fortalecimento, eles têm abordagens distintas.
O empoderamento, do ponto de vista esquizoanalítico, muitas vezes é associado a uma lógica de poder e dominação. Ele implica em adquirir poder ou autoridade sobre algo ou alguém, muitas vezes dentro das estruturas de poder preexistentes. Nesse sentido, o empoderamento pode estar vinculado à ideia de conquista de posição social, aumento de influência ou acesso a recursos.
Por outro lado, a potencialização refere-se a um processo mais amplo de desenvolvimento das potencialidades individuais e coletivas. A potencialização na esquizoanálise envolve a exploração dos desejos, afetos e capacidades criativas de uma pessoa ou grupo, visando liberar e ampliar seu potencial de ação e expressão. Ela não está necessariamente ligada a uma lógica de poder sobre os outros, mas sim à expansão das possibilidades de vida.
De certa forma, podemos considerar que, em alguma medida e em determinados contextos, a busca pelo empoderamento pode alimentar o mal do qual se foge. Trazendo para um contexto socioeconômico em que uma origem de privações e escassez direciona alguém a buscar incessantemente alcançar um patamar financeiro favorável, tal busca pode constituir em uma armadilha dupla: buscar conquistas dentr0 de um sistema de valores e de poder acaba por alimentá-lo mais do que combatê-lo, como socar um muro na intenção de perfurá-lo em vez de tentar contorná-lo. É uma abordagem ao problema que o produz enquanto problema.
Esta distinção é de suma importância na prática clínica, uma vez que buscas por algumas formas de empoderamento tendem a frustrar os sujeitos, mesmo que determinados objetivos sejam alcançados.
Uma clínica mecânica
Os preceitos da esquizoanálise de certo modo direcionam a perspectiva e a conduta clínica como uma espécie de horizonte a se buscar através do pensamento, da afetação e da experimentação, mais do que objetivos estáticos a serem alcançados.
A clínica esquizoanalítica pode ser bastante versátil, atendendo desde quadros psicóticos às neuroses mais corriqueiras. A crítica às categorias nosológicas e clínicas também é uma parte importante do escopo das discussões propostas pela esquizoanálise.
No caso da depressão, por exemplo, um exemplo de conduta clínica mais genérica seria a de perceber quais são as potencialidades do sujeito e de onde partem e para onde vão suas forças, para passar à investigação em parceria com o cliente do que está sequestrando, minando ou limitando tais forças.
A depressão enquanto expressão do sofrimento remete à insuficiência e ao não poder poder, geralmente porque esse poder do sujeito está direcionado à manutenção de certas estruturas mentais e de organização do eu que o enfraquecem. Seria o caso de buscar liberar essa energia investida naquilo que produz o adoecimento, seja uma crença, uma ilusão ou uma moral, para disponibilizá-la para ser aplicada em outros objetos ou perspectivas de si e dos seus arredores.
A esquizoanálise faz muitas alusões a um pensamento dos sujeitos, da consciência e das instituições enquanto máquinas. E não se trata exatamente de uma metáfora, mas da compreensão que seus autores têm destes entes. Entendem as coisas como máquinas que se encaixam, se movimentam, se incitam, se excitam etc. Esta ideia dialoga diretamente com um aforismo de Nietzsche que diz que "o espírito é um estômago". O que poderia soar como uma metáfora, em realidade retrata uma concepção de "espírito" enquanto corpo passível de afetações, e que, sendo um estômago, é alimentado por diversos afetos e experiências, e digere tais alimentos. Por vezes se intoxica com alguma coisa, que remói, que lhe sobe de volta, que lhe queima por dentro. Outros alimentos são digeridos, deles absorvendo-se nutrientes necessários à manutenção da vida, havendo um resto a ser descartado ou direcionado a algo ou alguém. Podemos pensar que nossos recursos e repertórios são enzimas que favorecem a digestão disto ou daquilo. Esta é uma concepção de sujeito que considero bastante interessante de ser adotada na prática clínica.
Na esquizoanálise, Deleuze e Guattari usam a metáfora do analista como um "relojoeiro" para descrever o papel do profissional que trabalha nessa abordagem. Essa imagem visa contrastar com a figura tradicional do analista como um médico que busca interpretar e decodificar os conteúdos inconscientes do paciente, como um organizador do discurso ou um intérprete deste.
Ao comparar o analista a um relojoeiro, eles enfatizam a ideia de que o trabalho do analista não é o de interpretar ou desvendar um sentido oculto nos sintomas ou nos conteúdos manifestos. Em vez disso, o analista deve ser alguém que lida com a complexidade das máquinas desejantes, dos processos de produção de subjetividade e das relações sociais.
Assim como um relojoeiro, o analista da esquizoanálise trabalha para mapear e compreender as relações e os processos que compõem a vida do paciente. Ele não busca encontrar um único significado ou uma verdade última, mas sim acompanhar e intervir nesses fluxos, ajudando o paciente a encontrar modos de criar novas conexões, de desfazer as territorializações rígidas e de experimentar novas formas de subjetivação.
Nestes "reparos" e intervenções realizadas no âmbito clínico, o objetivo não é o de reconstituir uma conjunção de peças que favoreça sua adaptação ou operacionalização "ótima", mas buscar reconfigurações, encaixes e conexões novas, que produzam saúde na singularidade que está em produção. Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche também nos provoca a agirmos não como pastores de rebanhos, mas como ladrões de ovelhas, "sequestrando" os sujeitos de determinados rebanhos dos quais acabam por fazer parte sem o querer ou mesmo sem o saber. Esta figura do ladrão de ovelhas definitivamente inspira a esquizoanálise em sua aplicabilidade clínica, embora também valha para pensarmos grupos, coletivos e organizações.
Algumas fontes interessantes para realizar outros contatos com a esquizoanálise são o site Razão Inadequada e o canal de Luiz Fuganti no YouTube.
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Este texto é uma versão esticada de uma apresentação realizada pela primeira vez em uma aula da disciplina Psicologia dos Grupos e Análise Institucional, do curso de Psicologia da Faculdade Santo Antônio em junho de 2023.
As ilustrações utilizadas neste post são produções do artista estoniano Anton Vill, criadas para o game de RPG Disco Elysium.
Lucas Delfin é Especialista em Psicologia Social e pós-graduando em Semiótica e Análise do Discurso.